Seja devido ao apoio dos adeptos, seja porque cada estádio tem as suas próprias características, da relva aos pontos de referência para os jogadores, ou porque o próprio estilo de jogo de uma equipa está mais talhado para determinada situação, jogar em casa ou fora dela encerra desafios totalmente diferentes. Não é, por isso, surpreendente que nos últimos dias se tenha levantado uma discussão acesa acerca dos estádios que serão autorizados para receber o que resta da temporada nacional neste cenário imposto pela pandemia que atravessamos. Mas qual é, afinal, a verdadeira importância de jogar em casa? É que para muitos clubes da Liga portuguesa, curiosamente, jogar fora até é mais benéfico.
Para muitos clubes da nossa Liga, jogar em casa não tem sido determinante para o sucesso da equipa. Bem pelo contrário. Têm sido várias as equipas que até pontuam mais fora de casa do que no próprio reduto. Para estas não se coloca qualquer cenário de adulteração da verdade desportiva caso não venham a poder jogar nos seus estádios: fazê-lo antes em campo neutro, ou sem adeptos, acaba por ser praticamente irrelevante – e se algo aprendemos com o regresso do futebol na Alemanha é que a diferença entre jogar em casa ou em reduto adversário se dilui significativamente perante a ausência de público nas bancadas. Já lá vamos.
Talvez por isso o Santa Clara, ao contrário do Marítimo, não tenha colocado especiais entraves em mudar-se de malas e bagagens para o continente, enquanto o clube madeirense, pela voz de Carlos Pereira, tenha ameaçado impugnar o recomeço da competição caso não fosse autorizado a disputar os jogos em casa, no Funchal. É que enquanto o Santa Clara pontua mais fora de casa, o Marítimo tem nos Barreiros uma fortaleza importante, que torna a equipa insular especialmente competitiva. Algo que não é de agora, diga-se.
O fator casa tem sido especialmente decisivo na luta pelo título na atual temporada, já que é nos resultados em reduto próprio que a diferença vai sendo feita na liderança. O FC Porto, com um registo caseiro superior ao do Benfica (no mesmo número de jogos) acaba por ter aí o pormenor que lhe permite regressar à competição na liderança. Em casa, a equipa de Sérgio Conceição cedeu apenas um empate e uma derrota, enquanto o Benfica permitiu um empate e duas derrotas.


Na Liga Portuguesa, esta temporada, são cinco os clubes cujos registos forasteiros superam os domésticos. Tanto Benfica, como Rio Ave, Santa Clara, Boavista e CD Tondela pontuam mais longe de casa do que no próprio reduto e se o Benfica acaba por não entrar na discussão atual que envolve o futebol português devido às condições permitidas pelo Estádio da Luz, caso nenhum dos outros seja autorizado a jogar em casa, talvez nenhum acabe por levantar grandes problemas ao facto de poder vir a ter de terminar a época em campo neutro – o Santa Clara, aliás, já anunciou que se irá mudar para a Cidade do Futebol em Oeiras.
No caso de isso suceder com clubes como o Moreirense, o Gil Vicente, o FC Paços de Ferreira ou mesmo o CD Aves, talvez a história fosse bem diferente, já que estes são os clubes que denotam uma maior variação entre os pontos conquistados em casa e fora dela – a par de FC Famalicão, que já anunciou que irá jogar em Barcelos. Curiosamente, enquanto os famalicenses assumiram que irão terminar a temporada em… Barcelos, o presidente do Gil Vicente anunciou na sexta feira que não sabia se o seu clube iria ser autorizado a jogar em casa, mas que caso não o fosse, também não iria levantar problemas. Mais curioso é ainda o facto do Estádio Cidade de Barcelos não ter recebido ainda autorização por parte da DGS e esteja obrigado a determinadas intervenções para que tal venha a ser possível.
Particularmente interessantes acabam por ser os casos de Moreirense e CD Aves. Segundo a imprensa nacional, o Moreirense, clube com o maior diferencial entre pontos conquistados casa/fora, já tem um acordo para terminar o que resta da temporada no D. Afonso Henriques, em Guimarães, enquanto o CD Aves tem neste tema mais um capítulo de divisão entre clube e SAD. Afinal, no mesmo dia, o presidente do clube jurou que os avenses iriam impugnar o início da competição caso não fossem autorizados a terminá-la em casa, enquanto um administrador da SAD, que controla o futebol profissional, deixou no ar a forte hipótese de o emblema cumprir o que resta da época no Bessa. Mais uma vez, estádio que não recebeu aprovação imediata da DGA na primeira ronda de autorizações feitas pela entidade que supervisiona a saúde em Portugal.
É que, hoje, foram conhecidos os estádios que receberam a tal aprovação imediata da DGS para receber o recomeço da competição. Cidade do Futebol, D. Afonso Henriques, Dragão, João Cardoso (CD Tondela), Alvalade, Luz, Barreiros, Municipal de Braga e Portimão estão assim autorizados e não precisam de qualquer modificação, enquanto Bonfim, Capital do Móvel, Cidade de Barcelos, Desportivo das Aves, Bessa e Arcos terão de ser alvo de intervenções caso pretendam receber o que resta da temporada, estando sempre sujeitos a nova vistoria da Liga e DGS.
Ausência de público dilui fator casa e há menos pressão sobre os árbitros
Jogar em casa ou fora tem um claro impacto no rendimento de uma equipa. Não é por acaso que três dos cinco últimos classificados da Liga são as equipas que têm os piores registos caseiros da competição. Mesmo na Alemanha, onde a bola já rola e todos os clubes estão autorizados a jogar no seu próprio estádio, ainda que sem público nas bancadas, a coisa não é igual, como bem explicou o diretor de comunicação do Borussia Mönchengladbach no final do encontro frente ao Eintracht Frankfurt.
“Fiquei surpreendido com a quantidade de gritos, instruções e ordens vindas do relvado. Os jogadores disseram-nos que foi tudo muito extenuante, mais do que o habitual, já que existiram menos paragens e menos tempo desperdiçado a discutir com o árbitro. Normalmente, com o ambiente quente vindo das bancadas, um jogo tende sempre para a existência de mais argumentos e os árbitros são mais propensos a apitar perante a pressão vinda do público. Deitamos um olho ao tempo útil de jogo e a verdade é que aumentou significativamente. Muitos jogadores descreveram o encontro como menos agitado, muito mais factual e justo. Ninguém estava a jogar para a fotografia pensando que tinham de fazer algum tipo de ação ou tackle para agradar ao público”, afirmou Markus Aretz à imprensa alemã.
Os dados estatísticos do primeiro fim de semana futebolístico em ambiente de Covid-19 provam esse ponto. Sem o impacto emocional e psicológico vindo das bancadas, que tanto aquece o sangue competitivo dos atletas de alta competição, foram registados em média muito menos duelos do que o habitual. Claro que tudo isto se pode simplesmente justificar com a falta de ritmo de jogo e dificuldade que as equipas tiveram em treinar durante muitas semanas, mas, a verdade, é que passámos de 71 duelos por jogo, em média, para 60.7. Além disso, as equipas pareceram ter menos urgência em fazer chegar a bola à área adversária já que se passou de uma média de 44.9 toques em área adversária por jogo, para 35.5.
Tal como referiu o diretor de comunicação do Gladbach, a ausência de público pareceu ter um impacto claro na quantidade de ações tomadas pelos árbitros das partidas. Segundo dados Opta, até à interrupção, nos 224 jogos disputados na liga alemã, as equipas visitantes fizeram mais 151 faltas e mais 62 cartões amarelos do que as equipas que jogaram em casa. Este fim de semana, por seu lado, não só a diferença se desvaneceu, como aconteceu precisamente o contrário com os árbitros a apitarem mais vezes contra as equipas que jogaram em casa, mostrando-lhes também mais cartões amarelos do que aos conjuntos forasteiros.
Sem surpresa confirma-se que um árbitro acaba sempre por ser influenciado pelas multidões, mesmo que subconscientemente. Num estudo recente efetuado pela London School of Economics – e bem recordado por Sean Ingle, no Guardian, há poucas horas – concluiu-se que os árbitros são também mais propensos a conceder mais tempo de compensação às equipas da casa conforme estas precisem de um resultado melhor. Não porque estejam comprados, claro, mas porque um ser humano irá sempre sentir a pressão de ter milhares de vozes a contestar as suas decisões.
A verdade, é que sempre que a equipa da casa se encontra na frente do marcador por apenas um golo, a tendência é a de que os árbitros concedam menos 30% de tempo de compensação face à média da competição. Por outro lado, caso o clube da casa esteja em desvantagem de um golo no marcador, a tendência é que os árbitros concedam mais 35% de tempo de compensação face à média. E com os números a aumentar consoante seja maior a assistência registada nos estádios. Mas há mais.
No mesmo estudo concluiu-se que se uma equipa visitante marcasse em período de compensação, esse período tinha tendência a alargar-se mais tempo do que se fosse a equipa da casa a faturar. Ou seja, os árbitros têm mais tendência a terminar um jogo mais cedo se for a equipa da casa a marcar em período de compensação e não a visitante, dando menos tempo a estes para tentar recuperar essa desvantagem.
Estudo semelhante foi conduzido em Itália, em 2007, e mais uma vez os resultados batem certo com os já referidos, com o números de faltas e cartões a diminuir drasticamente para as equipas visitantes em jogos disputados à porta fechada. Mesmo quando a análise se cinge a um árbitro em específico, analisando a forma como a mesma pessoa reage sob diferentes ambientes, anulando assim a possibilidade de diferentes árbitros poderem anular as conclusões tiradas já que ninguém arbitra da mesma forma do que um colega.
Só o tempo dirá se nos iremos voltar a aproximar das médias registadas até à interrupção à medida que as equipas ganhem ritmo de jogo ou se será este o novo normal. O de um futebol mais calmo que terá tendência para amenizar o impacto de jogar em casa ou fora dela. Para já, Lucien Favre, treinador do Borussia Dortmund, não está convencido: “Não se ouvia qualquer barulho. Criávamos uma oportunidade de golo e… nada. Um grande passe… nada. Golo… nada. É muito, muito estranho. Sentimos imenso a falta dos nossos adeptos. É um jogo totalmente diferente”, atirou.
O que é certo, é que nos últimos anos a tendência no futebol é a da anulação do fator casa, independentemente de condicionantes como as atuais. Nas últimas décadas, nas cinco principais ligas do futebol Europeu, o fator casa deixou de significar 49% de vitórias para as equipas a jogar no seu reduto. Agora vencem cerca de 45% dos jogos que disputam. E, no cenário que enfrentamos, tudo indica que jogar em casa ou fora dela, será irrelevante. A Bundesliga que o diga.
A (ir)relevância de jogar em casa
As épocas mais recentes no futebol português são bem ilustrativas da importância de jogar em casa, mas sempre com público presente nas bancadas. Na temporada passada, três das equipas com o pior registo doméstico foram precisamente as que desceram de divisão: Feirense, Nacional e GD Chaves – no caso dos flavienses, em igualdade pontual com CD Aves e Vitória FC. Lá por cima, o Benfica sagrou-se campeão tendo somado apenas um ponto a menos do que o FC Porto em casa, enquanto as duas outras posições europeias caíram precisamente para as equipas com os outros dois melhores registos caseiros: Sporting e SC Braga.
Já em 2017/18, não só o melhor registo caseiro foi campeão, como o pior acabou em último lugar. As restantes três equipas com mais pontos em casa foram aquelas que preencheram os lugares europeus, sendo que lá para baixo o FC Paços de Ferreira acabou por ser uma exceção. A equipa pacense desceu de divisão tendo estado relativamente longe de ter registado uma das piores campanhas domésticas nessa temporada. Exceção ocasionada por uma particularmente horrível campanha forasteira em que os castores conquistaram apenas seis pontos em 17 jogos disputados longe da Mata Real.
Em 2016/17? História semelhante. Benfica campeão com o melhor registo doméstico da competição e Nacional despromovido, em último, com o pior registo forasteiro. Os três clubes que mais pontuaram em casa ocuparam as três primeiras posições e só o Marítimo estragou a narrativa ao falhar a presença europeia quando até registou a quarta melhor campanha doméstica da competição. Conquistou-a, sim, o Vitória SC. No fundo da tabela, o FC Arouca, com um dos quatro piores registos forasteiros, acabou despromovido com o Nacional. E, nesse ano, foram apenas dois pontos que evitaram que os arouquenses fossem mesmo o segundo pior conjunto fora de casa da Liga. Marginal, portanto. Certo é que quatro dos últimos cinco classificados da Liga em 2016/17 coincidiram com os piores registos domésticos da competição.
Podíamos continuar a encontrar exemplos o resto da tarde. Em quase todas as épocas são as equipas com o melhor registo caseiro que ocupam as primeiras posições, enquanto as que ocupam os últimos lugares são geralmente aquelas que menos pontos conquistam em casa acabando habitualmente despromovidas. Exceção feita, claro, quando o registo forasteiro é especialmente mau e uma anomalia face à média habitual de pontos conquistados fora de casa pelas equipas despromovidas.
Porém, se alguma coisa sobressaiu do fim de semana de regresso do futebol na Alemanha é que este será um final de temporada atípico. Jogar em casa ou fora terá fronteiras muito ténues, diluindo drasticamente o fator casa que é tantas vezes decisivo na fortuna de uma equipa. Em cenário de pandemia jogar em casa tornou-se quase irrelevante.
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