No ano em que levou o FC Porto a conquistar a Liga dos Campeões pela última vez, em 2004, José Mourinho foi o responsável pela implantação de uma ideia na mente dos adeptos de futebol em Portugal: não se pode vencer na Europa como se joga por cá. Esse FC Porto, que tinha sido brilhante na conquista da Liga portuguesa e da Taça UEFA de 2003, em 4x3x3, foi transformado e passou a jogar em 4x4x2 losango para poder defrontar os maiores clubes do continente. No fundo, como o próprio Mourinho viria a provar ao longo da carreira – o caso de Eto’o no Inter foi paradigmático – o que conta nem são tanto os sistemas mas sim as caraterísticas dos jogadores e os papéis que podem assumir dentro deles. E, sempre à volta de Adel Taarabt, a peça móvel do seu sistema, deve ser esse o turbilhão de ideias que ocupa a cabeça de Bruno Lage no arranque da Liga dos Campeões, com a receção ao RB Leipzig, na Luz.
Este Benfica foi montado em 4x4x2 mas, mesmo sem abdicar dele, tanto na ponta final dos jogos em que já está em vantagem como, na pré-época, em desafios que se previa virem a ter um maior grau de exigência, como por exemplo o jogo contra o Milan, mudou uma peça na organização e, com isso, mudou tudo. Pensem em Taarabt. Onde joga? Contra o Milan jogou como avançado, a fazer companhia a Seferovic no “dois” da frente. Mas em Braga e na Luz com o Gil Vicente jogou como médio, no Minho ao lado de Samaris e em Lisboa perto de Fejsa, formando parte do “quatro” do meio. Que vai jogar hoje contra o RB Leipzig é seguro, mas onde só Bruno Lage saberá. Porque, mesmo que o treinador alegue que, escolha ele o que escolher, a equipa manterá a identidade, que isso depende de muito mais do que de um sistema ou das caraterísticas de uma peça, aquilo que vai colocar em campo será sempre diferente.
É seguro que, mesmo sendo o RB Leipzig o adversário teoricamente mais fraco do seu grupo – saiu do Pote 4, o que é uma gigantesca falácia… – o Benfica dificilmente pode jogar contra o poderoso esquadrão alemão da mesma forma como joga contra as equipas do meio da tabela para baixo da Liga portuguesa. E como se define, em termos de processos ofensivos, o futebol do Benfica na Liga portuguesa? Apresenta dois médios, um a baixar para ajudar na primeira fase de construção, outro a dar-lhe linhas de passe atrás da primeira zona de pressão do adversário. Depois é mais fácil falar já da frente, porque os dois avançados – tal como tem dito o treinador – têm um papel importante naquilo que é o futebol da equipa. Seferovic e De Tomás complementam-se na medida em que o suíço gosta de receber a bola no espaço, em busca da profundidade, enquanto o espanhol a recebe mais no pé, a pensar na finalização. O “esticar” do jogo que é proporcionado pela busca da profundidade de Seferovic, muitas vezes atrás da linha defensiva adversária, é responsável pelo espaço que há, sobretudo no corredor central, para que Pizzi, Rafa e o próprio De Tomás liguem jogo onde ele é mais perigoso: por dentro.
Estas movimentações de Seferovic, porque provocam o recuo repentino da última linha do adversário e aumentam o espaço entre linhas, além de gerarem a ilusão de que o Benfica joga com um avançado atrás do outro – e circula muito por aí a teoria segundo a qual De Tomás não marca porque está a jogar muito longe da baliza – são fundamentais na forma de jogar dos encarnados, porque soltam os verdadeiros desequilibradores. A ideia, aliás, não difere em nada da apresentada pelo melhor Sporting de Jesus, o de 2015/16, com Slimani em busca da profundidade, a alargar o espaço para aparecerem Gutierrez, a fazer de avançado menos móvel, Bryan Ruiz e João Mário partindo das duas alas em busca do jogo por dentro e William e Adrien como par de médios. Ora a questão a que importa agora responder é: que Benfica teremos hoje? O Benfica do costume, apenas pedindo a Pizzi mais atenção aos equilíbrios, que seja mesmo mais terceiro médio do que principal desequilibrador nas entrelinhas? Ou o Benfica que também está a ser treinado e até já foi testado, com Taarabt a fazer de segundo avançado, permitindo a inclusão de mais um médio?
A decisão de Bruno Lage terá três tipos de consequências.
Um, o menos importante, pode na mesma ser a sua cruz se as coisas correrem mal: aquilo que os adeptos vão dizer. É certo e sabido que se o resultado não for satisfatório, os especialistas em acertar no Totobola à segunda-feira vão dizer que não se admite que o Benfica mostre receio do RB Leizpig (se entrar o terceiro médio) ou que não se admite que se jogue tão aberto contra uma equipa como o líder da Bundesliga (se mantiver tudo como tem sucedido até aqui). Já se sabe que não há uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão e este será o jogo de estreia de Lage na Liga dos Campeões…
Outro, que será importante em termos de gestão de expectativas individuais dentro do grupo, tem a ver com De Tomás. O espanhol ainda procura o primeiro golo, começa a mostrar insatisfação quando os adversários fazem autogolos em bolas que lhe estavam destinadas ou quando é substituído, e até podia ser a surpresa de hoje, se Lage resolvesse apostar nele como nove solitário. Era assim que ele jogava em Espanha… O mais certo, contudo, é mesmo que, se a opção for a entrada de um terceiro médio, De Tomás seja o sacrificado. Sem ver os treinos, eu diria que a equipa está demasiado viciada nos movimentos de Seferovic para que isso funcione do ponto de vista coletivo. Mas é claro que esta seria uma opção visionária.
O terceiro, por fim, será o determinante e tem a ver com o papel de Taarabt, seguramente mais confortável se jogar mais à frente. A verdade é que ao marroquino faltam o jogo sem bola e a disciplina de posicionamento que se pede a quem joga num meio-campo a dois contra um adversário tão hábil na transição ofensiva, o que leva a que a sua maior arma – a forma como abusa do risco no passe vertical – possa expor a equipa a contra-ataques fatais.
No fim, tudo se resume às caraterísticas dos jogadores. Com Gabriel, acho que Bruno Lage poderia ir mais tranquilo para o 4x4x2 habitual – e não é porque o brasileiro defenda melhor do que o marroquino, mas sim porque arrisca menos com bola. Sem Gabriel, e sendo o preço a pagar pela inclusão de Taarabt no duo nuclear da equipa o maior sacrifício de Pizzi, que depois pode ser tão importante na frente, acredito que a melhor opção de Lage passe mesmo por fazer do marroquino o segundo avançado.