O cancelamento da Liga cipriota sem campeão e descidas teve consequências completamente distintas para os clubes. Como quem dá e tira com a mesma mão. Aqueles que estavam na luta pela permanência ficaram absolvidos por mais um ano, enquanto os que podiam almejar ao título ou sonhar com um lugar europeu ficaram aquém da façanha, com a federação a indicar os quatro primeiros para as provas da UEFA. Há jogadores portugueses a passar pelas duas situações, quando faltavam disputar sete jornadas do campeonato de num país pouco fustigado pela pandemia de Covid-19, mas que conseguiu esse estatuto através de regras cautelosas. O contingente luso não tem tido vida fácil para regressar à pátria dos egrégios avós.
Num campeonato que conta com alguma presença portuguesa, tem vindo a construir-se uma comunidade abraçada pelos jantares. No entanto, a situação de pandemia e o término da Liga fez com que os portugueses quisessem voltar a casa, algo que não está a ser possível. “Após o campeonato ter sido oficialmente cancelado, a comunidade de jogadores portugueses juntou-se em busca de soluções para o regresso a casa, o que não está nada fácil… O papel desempenhado pela embaixada portuguesa fica muito aquém”, começou por contar-nos Miguel ‘Miguelito’ Ribeiro, jogador do Ethnikos Achnas. “Somos mais de 50 portugueses a querer ir para casa e as soluções apresentadas pela embaixada não são de todo admissíveis. Não queríamos que nos pagassem a viagem de repatriamento, mas sim que nos dessem algum apoio e que em conjunto arranjássemos uma solução para tudo”, salientou o médio.
No que diz respeito às implicações desportivas, quando se deu o cancelamento do campeonato, a federação cipriota decidiu respeitar a classificação e indicou Omonia (Champions), Anorthosis (Liga Europa), APOEL (Liga Europa) e Apollon Limassol (Liga Europa) como representantes europeus em 2020/21. No entanto, havia quem ainda tivesse hipótese de conquistar um lugar nesses patamares e que por isso mesmo sente que saiu prejudicado por esta decisão. O AEL Limassol, dentro do apuramento de campeão, estava a oito pontos da quarta posição e com a meta de lá chegar, contou-nos André Teixeira, defesa do clube que estava também vivo na Taça do Chipre.
“Estávamos na meia-final da taça e ainda na disputa por lugares europeus no campeonato. Acredito que saímos prejudicados. É lógico que não sabemos o que iria acontecer, mas tínhamos esses objetivos e as possibilidades de os conseguir eram grandes”, começou por salientar o jogador de 26 anos que passou pela formação do FC Porto e chegou a solo cipriota em 2017, vindo do Leixões. “Em relação ao campeão, não foi declarado nenhum, até porque as duas equipas que iam na frente estavam com os mesmos pontos, o que decidiram foi que o primeiro iria à Liga dos Campeões e o outro à Liga Europa”, explicou ainda André Teixeira, antes de dar conta do que se passou mais abaixo na tabela e considerar que o desfecho foi benéfico para aqueles que estavam na luta pela permanência. “Ninguém desceu, irão subir duas equipas e o campeonato irá ser de 14 clubes na próxima época. Acredito que neste caso, sim, tenha sido proveitoso para as equipas em questão.”
Por falar nisso mesmo, apesar de todo o peso que tira das costas o facto de não haver descidas, a verdade é que os protagonistas gostariam de assegurar a permanência entre a elite do país dentro das quatro linhas. É precisamente isso que nos diz Miguelito, médio do Ethnikos Achnas, equipa que se encontrava em zona de descida, a dois pontos do lugar que já proporcionaria a salvação. Com dois triunfos e um empate nos quatro compromissos mais recentes, o português de 30 anos acredita que os índices de motivação seriam como que uma catapulta para a permanência. “Estaria a mentir se dissesse que não ficámos contentes por não haver descidas. No entanto, a equipa estava a atravessar o melhor momento da época, conseguimos bons resultados nos últimos jogos, muitos deles bastante motivadores, que acredito que nos iam ajudar a conseguir a manutenção dentro de campo”, referiu o centrocampista que rumou do Amarante FC a Achna no último verão. E é necessário alertar para que sem descidas esta temporada, na próxima serão quatro os emblemas a cair à segunda liga, um foco que já começa a deixar os jogadores a pensar. “Se virmos bem as coisas, no próximo ano descem quatro equipas, o que nos vai deixar ainda mais alerta!”, frisou Miguelito.


Um pouco mais acima na tabela, mas também no grupo de ‘play-out’, com quatro pontos de avanço sobre as posições de descida, ficou o Olympiakos Nicósia, onde joga Rogério Silva. O jovem avançado de 23 anos, com passagens por FC Porto e Boavista na formação, fez um balanço das consequências deste cancelamento e a dicotomia entre os benefícios e os prejuízos. “Há sempre os prós e os contras do término do campeonato. No meio disto, quem estava a lutar pela manutenção sai beneficiado perante todos os outros, assim também como as duas equipas que subiram da 2.ª Divisão. Porém, quem estava a lutar para ser campeão sai prejudicado, pois apesar de garantir a entrada nas competições europeias, ninguém foi declarado campeão”, apontou o extremo que em 2018 deixou o Sousense para voar até Nicósia.
A questão financeira, a física, a meteorológica e a saúde
O Chipre até nem é dos países mais abatidos pela pandemia de Covid-19 no mundo fora, muito pelo contrário. Tal como nos revelam os futebolistas portugueses por lá, os números de casos confirmados novos por dia estão na média de um ou dois. Para além disso, num total de 927 casos (até sexta-feira), 350 continuam ativos e foram 17 as mortes no país. Ora, comparado com a grande maioria da Europa, o Chipre lidou bem com a situação. Para isso em muito contribuíram as regras impostas pelo governo e autoridades. Por exemplo, os jogadores com quem falámos relatam que durante os dois meses e meio que passaram só podiam sair de casa uma vez por dia e com autorização por telemóvel, ou seja, era necessário enviarem uma mensagem às autoridades a darem conta do sítio onde iriam e a razão para tal. Mediante isso, seria ou não aprovada a saída à rua. Apesar de já haver alguma ‘normalidade’ por lá, com muitas normas pelo meio, ainda não há certezas quanto a datas para o começo da próxima época, embora se fale que o campeonato possa ter início entre finais de agosto e setembro.
“A razão para o cancelamento foi porque o governo não aceitou o protocolo que a federação fez para voltarmos a jogar. Uma das medidas, entre as quais, era que em caso de alguém ficar infetado apenas esse jogador ficar em quarentena, enquanto o governo queria que ficasse toda a equipa durante 14 dias. Esse é apenas um exemplo de algumas medidas que não concordaram e por isso não permitiram que jogássemos”, deu conta André Teixeira. O lateral do AEL Limassol que até estava a favor do reatar da liga. “Na minha opinião e na de muitos jogadores, pensamos que era possível jogar e era o que queríamos, mas era uma decisão que não passava por nós”, explicou.


“Aqui no Chipre a principal razão que apontaram ao fim do campeonato foi não terem conseguido chegar a acordo em todas as normas de segurança e higiene. Além de que, pelo que sei, apenas duas ou três equipas queriam voltar a competir, pois muitas atravessam algumas dificuldades financeiras devido à pandemia. Aliou-se os dois fatores e então decidiram terminar”, confidenciou Rogério Silva. Esta problemática financeira de certos clubes é corroborada por Miguelito. “Uma das razões foi os clubes não estarem preparados quer a nível de estruturas e económico. Se não me engano, apenas três equipas votaram a favor do campeonato retomar.” Para além disso, há ainda o clima tropical do Chipre, conhecido pelas praias e como destino de férias. “Há ainda a questão do calor, foi uma das razões por terem cancelado… ou jogavas às 7h00 da manhã, ou às 23h00, o que ia acabar por ser complicado por causa das transmissões”, atestou o jogador do Ethnikos Achnas.
O mesmo Miguelito que revelou ter mudado de opinião relativamente ao cancelamento do campeonato e que agora percebe que foi um mal necessário para o bem-estar geral. “Se me tivesses feito essa pergunta logo no início da pandemia, diria que não porque não tinha bem noção das coisas. Se queria que fosse cancelado? Não! Queria jogar, até porque só temos a perder quer a nível financeiro, quer físico. Mas agora concordo que se tenha desenrolado assim. Estamos há muito tempo parados, ia ser muito difícil voltar à forma física em que estávamos e não queria correr o risco de contaminar a minha família”, disse o médio.
Já Rogério Silva considera que o cancelamento foi a atitude mais sensata em termos de saúde. “Apesar de ser profissional e querer voltar a fazer o que mais gosto o mais rápido possível, estou de acordo com o término dos campeonatos. Neste difícil momento, o que mais importa é prezar pela saúde de todos os intervenientes seja em que área trabalhem”, destacou o jogador do Olympiakos Nicósia, antes de frisar o porquê de o desporto rei enfrentar tantas dificuldades dentro de campo em caso de reatamento. “No futebol e nos outros desportos coletivos há coisas que não podemos controlar… podemos amenizar, mas muito dificilmente controlar, porque não é possível jogar sem o contacto, é difícil um jogador fazer um golo e na emoção e na felicidade do momento controlar-se para não se agarrar aos companheiros.”
Rogério Silva destaca ainda os índices físicos como uma questão fulcral para que não se dê o regresso do futebol no Chipre. “Após mais de dois meses a treinar em casa sozinho, mesmo que tenhamos todas as condições possíveis, não é igual à intensidade de um treino ou jogo. Haveria riscos em voltar o campeonato de uma forma tão repentina.” O avançado recorre mesmo à única das principais ligas europeias que já foi reatada como forma de exemplo para que se perceba estar a colocar em risco a integridade física de jogadores. “Tenhamos em consideração a Bundesliga, em que numa jornada apenas houve cerca de oito casos de lesões musculares . Será que não teria sido melhor colocar um fim ao campeonato? E reunir a partir daí para começarem a preparar a próxima época, talvez até mais cedo que o normal para os jogadores terem o devido tempo de voltar a conseguir competir a 100 por cento, tanto física como mentalmente.”
As praias, o clima e a gastronomia… é o Chipre
Fora do contexto de pandemia, todos os jogadores com quem estivemos à conversa descreveram o Chipre como um país ideal para viver. Entre o calor abrasante, as praias paradisíacas e até mesmo a tranquilidade, tem vindo a formar-se uma família entre falantes de português. No entanto, não se deixe enganar por essa mesma tranquilidade das paisagens… é que para visitar terras cipriotas o melhor mesmo é habituar-se a ouvir falar alto. “Aquando da minha chegada ao aeroporto de Larnaca, eu pensava que toda a gente estava a discutir uns com os outros, mas depois é que entendi que eles aqui falam alto e até de uma forma que parece agressiva, mas é algo que para eles é completamente normal”, revelou Rogério Silva. Desportivamente, o que mais marcou o jogador do Olympiakos Nicósia na estadia por lá foi a subida ao principal escalão na temporada passada.


“A minha experiência no Chipre tem sido muito boa, sem dúvida que é um país fantástico para viver, temperaturas agradáveis, praias fantásticas, quase toda a gente quase fala inglês, o que ajuda bastante na comunicação”, acrescentou ainda Rogério, que confidenciou não ser o maior fã da gastronomia de lá. “Há uns três ou quatro restaurantes que costumo ir e que gosto bastante da comida, mas graças a Deus a minha mulher é uma cozinheira fantástica e em casa é como se estivesse num restaurante português”, revelou. Ainda assim, são os insetos os maiores ‘inimigos’ de Rogério no Chipre, pois o calor faz com que sejam em “quantidades imensas.”
Voltamos ao foco gastronómico e é também nesse parâmetro que Miguelito encontra o único defeito ao Chipre, o “facto de comerem ‘souvlaki’ (pequenas espetadas grelhadas de pequenos pedaços de carne e vegetais) a toda a hora”. Tirando isso, tudo são elogios. “Vim ao desconhecido porque estive ligado ao mesmo clube durante muitos anos, esta mudança foi um marco muito importante na minha vida, tanto pessoal como profissional. Desde início fui muito bem recebido, quer pelo meu núcleo de trabalho, quer pela população em geral, fazem-me sentir um deles, o que para quem está fora de casa é ótimo. É uma ilha muito bonita e pacífica, impossível não ficar deliciado com estas praias. O que mais me marcou foi a minha primeira época… era tudo muito novo, muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, foi um período de adaptação profissional mas principalmente emocional. A primeira vez longe da família nunca se esquece”, destacou o médio que chegou primeiramente ao Chipre em 2016.
Nas palavras de André Teixeira, a vivência em solo cipriota tem sido bastante proveitosa, tanto desportivamente como culturalmente. “A experiência tem sido muito boa. A nível profissional as coisas têm corrido muito bem, as últimas duas épocas joguei sempre a um bom nível e no ano passado ganhámos a taça, algo que o clube já não ganhava há 30 anos. No geral, tem sido muito positiva. Quanto ao aspeto cultural, também tem sido bom. É um país bastante tranquilo, com boa qualidade de vida, as pessoas são simpáticas e acolhedoras”, disse o jogador do AEL Limassol, antes de deixar ainda um convite. “Sinceramente não existe nada que não goste aqui no país, e até aconselho a quem puder a visitar o Chipre que de certeza irá gostar.”
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