O futebol passou nos últimos anos por uma assustadora inflação, provocada pela entrada na modalidade de uma avalanche de milhares de milhões de euros que não são do futebol. Esses milhares de milhões de euros têm uma face visível – os agentes de jogadores, tantas vezes ligados a gigantescos grupos financeiros, representantes dos interesses do grande capital, responsáveis pela entrada no jogo dos tais milhares de milhões de euros e por isso mesmo recompensados à altura. A FIFA destacou recentemente que as comissões pagas a agentes em 2019 totalizaram 601 milhões de euros, quatro vezes mais do que em 2015, e quer travar este fenómeno. Faz bem. Mas não chega.
Ver a FIFA centrar a guerra pela transparência no futebol nos agentes é como estar a ver “O Padrinho” e a polícia andar preocupada com os tipos que entregam as mensagens entre as famílias da mafia. O que, mesmo que essas mensagens incluam atrocidades como a colocação de uma cabeça de cavalo aos pés da cama de alguém, é confundir a árvore com a floresta. Claro que os agentes são importantes no negócio global em que se transformou o mercado do futebol, com frequentes suspeitas de esquemas de pirâmide, de lavagem de dinheiro e de enriquecimento ilícito. É por isso que faz todo o sentido que o organismo que tutela o futebol mundial queira introduzir medidas como a limitação da percentagem das comissões, a proibição de um mesmo agente representar mais do que uma das partes num negócio ou a reintrodução do licenciamento como modo de subir o nível. A questão é que isso não chega, pois o problema está a montante.
É evidente que os mais poderosos agentes FIFA neste momento – Mendes, Raiola, Barnett, Zahavi… – já não são meros mensageiros na relação entre o futebol e o grande capital e já se sentam à mesa dos poderosos. Mas é nestes poderosos que deve ser centrada a luta pela transparência, criando regras claras para a propriedade de clubes ou os interesses financeiros a eles associados. Porque o verdadeiro problema não é haver um agente que representa clube vendedor e clube comprador numa transação e por isso guardar dez por cento do dinheiro envolvido. É esse mesmo clube vendedor e clube comprador terem outro tipo de interesses em comum e o dinheiro ser suspeito. Acredito que a FIFA possa um dia lá chegar, mas sei que esse dia está ainda muito longe.
É que aqui há (pelo menos) dois problemas adicionais.
Primeiro, não é fácil legislar acerca da transparência quando se está a fazê-lo para clubes pertencentes a dezenas de quadros legais diferentes. Como aquilo que é permitido em Portugal é diferente do que é permitido em França, em Inglaterra, na Rússia, na Suíça ou na China, torna-se muito mais complicado ter limites claros no futebol do que, por exemplo, numa NBA, numa NFL ou numa qualquer liga fechada e circunscrita a uma realidade legal una. Não sou especialista na matéria, mas creio que seria impossível a um mesmo grupo ter duas franchises na NBA, como a Red Bull teve esta época na Liga dos Campeões, com o Salzburgo e o Leipzig. E atenção que a Red Bull até é das que faz as coisas às claras, ao contrário do que sucede com os fundos de investimento cada vez mais presentes no mundo do futebol ou com a relação entre os agentes e os diversos oligarcas russos, os príncipes árabes ou os milionários chineses que entraram no jogo, por exemplo.
Depois, a verdade é que o futebol é cúmplice. Claro que a entrada no jogo dos tais milhares de milhões sabe bem a muita gente. Sabe bem aos agentes, claro, porque ganham mais em comissões. Mas também sabe bem aos jogadores, que veem o seu valor de mercado e os ganhos subir. Sabe bem aos clubes, que recebem mais em receitas extraordinárias, porque aqueles que gastam mais raramente o fazem com o dinheiro deles – é sempre um “investidor”. Sabe bem aos adeptos, que têm no mercado uma das formas mais populares de alimentar bazófias de café com amigos de outras cores. E, no limite, sabe bem à FIFA, que fez do Mundial a marca mais apetecível e lucrativa do mundo do desporto global.
Caríssimo Tadeia, análise muito aquém da realidade. A FIFA jaaammmaaais chegará lá porque se recusa a entender o modus operandi. Quando ela um põe um executivo de carreira como Omar Ongaro, que nunca sentou com um agente, a tratar dos assuntos dos agentes, estamos conversados.