As autoridades futebolísticas e de saúde tentaram fazer passar uma ideia de evolução saída da reunião de ontem entre Pedro Proença, presidente da Liga, e os secretários de estado da saúde e do desporto, António Lacerda Sales e João Paulo Rebelo, mas aquilo que senti ao ouvir as declarações proferidas no final do encontro foi preocupação. O número de infetados com Covid19 – quase todos assintomáticos – está a crescer de forma dramática nos plantéis das equipas da Liga, naquilo que parece ser a chegada a Portugal da segunda vaga da doença (ainda por cima potenciada pelos meses que já levamos disto e que faz crescer em cada um de nós a ligeireza com que encaramos a coisa), e aquilo que Lacerda Sales afirmou foi que “a avaliação depende das autoridades locais de saúde e terá de ser feita caso a caso”. Ora era precisamente isso que importava evitar, com a criação de regras claras, uniformes e nunca casuísticas, que deixem o campeonato depender dos humores momentâneos dos delegados regionais de saúde.
Compreendo o princípio da quarentena e, embora possa questionar a sua aplicação – veja-se a forma como a Suécia tem lidado com a doença… –, compreendo que não estou na posse de dados mais globais e multidisciplinares, tais como a capacidade de resposta do SNS em caso de uma vaga avassaladora da pandemia. Ainda assim, parece-me evidente que o futebol, mais a mais o futebol de topo, que é jogado por atletas profissionais que, regra geral, mesmo que infetados, estarão assintomáticos, tem de ter pelo menos as regras tão permissivas como outras atividades económicas que também estimulam a proximidade física entre cidadãos. Se o futebol se prontifica a fazer testes, excelente: esses testes devem servir para impedir de jogar aqueles que testam positivo para Covid19, mas ao mesmo tempo para permitir que os que testam negativo possam ir a jogo. Impedir jogos entre atletas que, todos eles, testaram negativo, como aconteceu com o Feirense-GD Chaves, por exemplo, só porque eles estiveram em contacto com outros que entretanto revelaram presença do virus, é terrível. E deixar essa decisão à avaliação casuística do delegado regional de saúde é ainda pior, porque arruína quaisquer possibilidades de haver equidade entre competidores.
Se continuamos por este caminho, mais vale assumir que não vamos ter Liga em 2020/21. Com a chegada da segunda vaga da doença, dificilmente teremos equipas sem infetados, por menos que eles sejam, e chegaremos ao Natal com uma quantidade tão grande de jogos em atraso que se revelará impossível recuperá-los em tempo útil. E aqui, a responsabilidade não é só das autoridades de saúde. Os clubes e a Liga também não fizeram a sua parte do trabalho. Ao aprovarem o Regulamento de Competições para 2020/21 – um extenso documento onde, felizmente, figuram até detalhes para questões como as flash-interviews – não incluíram nele um tema tão fundamental como as condições mínimas indispensáveis para, face à pandemia, poder ser pedido um adiamento por um clube que tenha o plantel drasticamente amputado por testes positivos. Não por razões sanitárias, mas por razões de defesa da idoneidade da competição, que já foi posta em causa, por exemplo, no famoso Vitória FC-Sporting da gripe sadina, em 2019/20. Bem antes da Covid19.
Por acaso, Sporting e Gil Vicente, os dois plantéis mais afetados por uma série de casos de infeção, vão defrontar-se na primeira jornada da prova. Mas imagine-se que era apenas uma das equipas a ver-se privada de uma dúzia de jogadores por causa da doença? Até que ponto é que a realização do jogo seria justa para essa equipa ou para os rivais na classificação do seu adversário daquele dia? Tendo o futebol de alto rendimento a capacidade para testar de forma intensiva, o que me parece razoável é assentar ideias em cima de uma base razoável que estipule o seguinte:
- Jogadores que testarem positivo para Covid19 são colocados em quarentena, mas os que testarem negativo podem jogar, não fazendo depender esse facto da avaliação casuística do delegado regional de saúde;
- Os jogadores continuam obrigados a um dever de reserva de contacto com pessoas de grupos de risco, precisamente por saberem que, mesmo havendo a probabilidade elevada de não virem a revelar sintomas da doença, se a contraírem continuam a ser potenciais focos de contaminação para quem possa vir a sofrer com ela;
- Um clube que se veja privado de, por hipótese, um mínimo de seis jogadores que tenham realizado pelo menos metade dos minutos na competição até aí, por terem testado positivo à Covid19, pode, se assim o entender, pedir o adiamento de um jogo, de forma a evitar o desvirtuamento da competição.
Esta parecer-me-ia uma boa base de partida para começar a Liga. E se a primeira alínea depende da DGS e a segunda do bom-senso de cada um, a terceira dependia dos clubes. E, ao descurarem-na, estes abriram o palco às mesmas suspeições de que se queixam, pois andam a matar a credibilidade do futebol. Porque, sim, não tarda e teremos aí as mesmas teorias da conspiração que já tivemos aquando da retoma da Liga de 2019/20, a acusar a DGS de estar a querer escolher o campeão. Quando, na verdade, se fosse só a DGS a decidir, nem teríamos campeonato.
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