A proposta foi, ao que relatam os jornais, de António Salvador e, ao que dizem também, foi aplaudida e aprovada por todos: nenhum dos nossos clubes vai tentar contratar jogadores que rescindam unilateralmente os seus contratos durante o período da pandemia. Perante esta realidade, há muito quem veja solidariedade. Eu vejo cartelização. Vejo abertura da porta do incumprimento. E um tiro no pé do futebol português, que por muito que os dirigentes só se lembrem de que há estrangeiro quando se trata de gerar mais-valias em transferências, vive numa situação de globalização.
Já tinha deixado aqui as minhas dúvidas acerca da aplicação de uma lei geral, como é a do lay-off, a um setor que sempre se bateu pela especificidade, como é o do futebol. Tal como tinha igualmente dito – e continuo convencido disso – que o futebol saberá responder à sociedade neste período de dificuldade. Os indignados do costume, aqueles que acham que todos os jogadores de futebol ganham como Ronaldo ou Messi, que lamentam que o futebol seja uma indústria e defendem que os melhores futebolistas deviam jogar por amor à camisola mas depois não estendem esse raciocínio aos melhores atores, aos melhores advogados ou aos melhores arquitetos, por exemplo, terão de recordar, primeiro, as inúmeras ações solidárias que muitos dos grandes futebolistas ou clubes já patrocinaram. E devem depois lembrar-se que também há gente no futebol que não ganha assim tanto dinheiro. E que esses são uma larguíssima maioria.
Peguemos em casos concretos. O francês Beunardeau, guarda-redes do CD Aves, estava há três meses sem receber um salário que não será assim tão substancial. Rescindiu, alegando justa causa. O pacto inventado pelos clubes nacionais implica agora que ninguém por cá possa contratá-lo. Os estrangeiros da AD Oliveirense, por seu turno, aqueles que estavam a passar fome na sequência da declaração de insolvência da SAD que os fez vir para Portugal, para jogar no terceiro escalão nacional, poderiam assinar por outro clube, mas só porque foi o clube a deixá-los. E se, cansados de não receberem, se tivessem antecipado e pedissem eles a rescisão unilateral do contrato? Ficavam desempregados e desamparados por causa deste cartel que fede a Anos 80?
Isto é justo? Digo-vos já que não. É inteligente? Também creio que não.
A injustiça que resulta desta cartelização preconizada pelos nossos clubes coloca-se logo à partida por ser uma medida que tenta limitar o direito ao trabalho de profissionais com os quais a entidade patronal não está a cumprir. Para os jogadores, portanto, resta aguentar e não bufar. Ao mesmo tempo, da parte dos clubes, é o abrir de porta ao incumprimento. E até creio que a motivação principal dos clubes não tem a ver com justiça ou injustiça, mas sim com medo. Com o medo de que apareça aí alguém com fôlego financeiro para passar esta fase má e capacidade para se reforçar enquanto a generalidade definha.
Ora deixem-me dar-vos uma novidade que quem quer que já tenha visto séries como Narcos, por exemplo, já sabe de cor e salteado: os carteis só funcionam quando impedem a atividade de quem quer que esteja fora dele. É isso que faz com que esta medida, além de injusta, seja também pouco inteligente. O cartel que os clubes portugueses vão criar não obriga emblemas que estejam para lá da fronteira. O que acham que vai fazer Beunardeau, que até é francês e foi internacional sub19 por França? Volta ao seu país, como é evidente. Da mesma forma que nenhum jogador com mercado – e esses costumam ser os melhores… – vai deixar de pedir a rescisão do contrato se os clubes com ele deixarem de cumprir. Fá-lo-á na mesma, seguro de que encontrará clube para lá da fronteira. Aos clubes portugueses restarão os outros, os que não têm mercado, o refugo.
E assim continuaremos, rumo ao precipício, mas sempre unidos nesta honrosa incapacidade de aproveitar a desgraça alheia. Que bonito!
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