O regresso da Major League Soccer é feito através de uma “bolha” que gera dinheiro, segurança e críticas… Tudo ao mesmo tempo. Quando a retoma do futebol está a decorrer dentro da normalidade (possível), com as devidas medidas de prevenção relativamente à pandemia de Covid-19, nos Estados Unidos foi decidido levar todos os jogadores, técnicos e staff para a mesma localização, o complexo de parques temáticos da Disney, em Orlando. Por lá, permanecem em confinamento futebolístico durante 40 dias, afastados dos familiares, o que levou algumas figuras a ficar em casa. Este formato de torneio “MLS is Back” serve como teste piloto para os restantes desportos coletivos norte-americanos.
“A decisão foi tomada para tentar providenciar o ambiente mais seguro durante a pandemia. A ideia é a de que um ambiente controlado e com testagem rápida oferece mais segurança do que estar em casa e viajar. A NBA e a NHL estão a fazer o mesmo. O Dr. Fauci (o principal expert de doenças infeciosas nos Estados Unidos) considerou a ideia da bolha como o melhor plano. Eles basicamente ficam pelo hotel, podem fazer o que quiserem nos respetivos quartos, estão pela piscina e pelas áreas com jogos, entre outros. Não é o ideal, mas nada o é durante estes tempos”, explicou-nos Tom Bogert, jornalista que cobre o campeonato norte-americano para o The Guardian ou a FourFourTwo, entre outros.
A MLS teve de reatar porque a ameaça de perdas financeiras assim o exigiram. Na imprensa do país chegou a falar-se que os jogadores prescindiram de valores que no total rondavam os cem milhões de dólares. Ora, este regresso vem servir inteiramente o propósito monetário. Não há espectadores nos estádios, o que faz com que toda a transmissão televisiva seja montada para que as pessoas em casa vejam perfeitamente os patrocínios ao redor do campo. Para além disso, os próprios clubes quiseram aumentar o número de patrocinadores nas camisolas de forma a ajudar os patrocinadores locais, que perderam visibilidade por não haver jogos nos estádios devido à pandemia. À boa maneira americana, o desporto e o dinheiro estão conectados de forma intrínseca e por isso mesmo esta situação não é de estranhar.
Para que se perceba, este torneio não coroa o campeão da MLS. O objetivo é acabar por levar a cabo a fase regular da competição a partir de fins de agosto. O formato introduzido nestes dias na Disney é como que um Campeonato do Mundo. As 24 equipas (eram 26, mas duas tiveram de abandonar, como verá mais à frente) estão divididas em seis grupos e passam à fase seguinte os dois primeiros classificados de cada, assim como os quatro melhores terceiros lugares. Depois dos três encontros da fase de grupos, é hora do ‘mata-mata’. “Os jogos dos grupos contam para os pontos da fase regular, mas não os de eliminar. Quem vencer o torneio, conquista um lugar na Liga dos Campeões da CONCACAF. A ideia é que a época vai continuar depois disto, mas ainda nada foi anunciado ou confirmado”, conta-nos Tom Bogert.
Dallas e Nashville, casos que não retiram a segurança
O jogo de inauguração do torneio teve lugar a 9 de julho, mas a estrada percorrida até lá encontrou vários obstáculos. O primeiro deles foi apresentado pelo FC Dallas, removido da competição depois de dez jogadores e um membro do staff acusarem positivo no teste à Covid-19. Os elementos do clube já deixaram Orlando, mas ainda estiveram por lá alguns dias naquilo a que se chama de “bolha” dentro da “bolha”, isolados de todos em quarentena nos quartos de hotel. “Foi uma decisão difícil de tomar, mas sentimos que foi a correta para o torneio”, testemunhou Don Garber, comissário da MLS, em declarações reproduzidas pela ESPN. O representante da liga norte-americana confidenciou que o organismo partiu para esta demanda “consciente de que haveria impacto do vírus no torneio”. Mas, tal como todo o mundo, sentindo que há que conseguir adaptar-se. A verdade é que a equipa do Texas percebeu perfeitamente a razão pela qual não pôde ir a jogo. “A prioridade secundária deste torneio é a competição. A primeira é a saúde do grupo”, destacou Luchi Gonzalez, treinador do FC Dallas. A MLS acredita que a forma como esta situação foi tratada é demonstrativa de que o protocolo é efetivo, com base no isolamento de jogadores que acusem positivo à chegada a Orlando.

Ainda assim, um jogador do Sporting Kansas City (onde jogam Luís Martins e Gerso Fernandes) acusou positivo já depois da equipa estar na Disney. No entanto, a equipa não viu o jogo ser adiado, pois o protocolo diz que um caso positivo já dentro da “bolha” (caso a equipa esteja lá há mais de oito dias) não resulta em adiamento. Houve algumas partidas adiadas por testes inconclusivos, mas apenas o Nashville SC conheceu o mesmo destino que o FC Dallas. O emblema do Tennessee tinha chegado a Orlando no dia 3, mas foi removido do torneio depois de nove jogadores acusarem positivo a Covid-19.
Apesar destas duas saídas forçadas, assim como do surgimento de casos positivos dentro da “bolha”, há quem se sinta perfeitamente seguro dentro das instalações da Disney. O internacional português Nani, que até já marcou um golo na Disney, foi um dos porta-voz dessa segurança. “Para ser sincero, eu sinto-me seguro. Desde que cheguei ao hotel vi as condições, concordo com a forma como coordenam tudo para que os jogadores estejam em segurança e, pelo que vejo de todos os jogadores e equipas, eles parecem felizes e confortáveis com os protocolos”, apontou o jogador do Orlando City (equipa já com duas vitórias no torneio, na qual alinha também o jovem defesa português João Moutinho).
Do relvado para o banco de suplentes, Frank de Boer, timoneiro do Atlanta United, atestou igualmente a qualidade e critério no capítulo da segurança em relação à saúde. “Estamos agora na terceira vez em que somos testados. Então penso que estamos a sentir-nos realmente seguros. Todas as medidas de prevenção estão aqui para nos sentirmos em segurança”, começou por referir. “Quando o Dallas FC veio para cá, provavelmente já estavam contaminados em Dallas. Isso é diferente. Penso que as pessoas se sentem seguras agora. A MLS e o hotel, a Disney, estão a fazer tudo possível para que nos sintamos em casa aqui.”
Thierry Henry, nome ímpar na história do desporto rei, é outro dos treinadores que está de acordo com o regresso do futebol nos Estados Unidos concretizado desta forma. “Os jogadores são como são, têm de lidar com uma situação que não é simples e toda a gente tem de o fazer. Como todos sabemos e estamos tristes por isso, pessoas faleceram; outras perderam os empregos, algumas empresas nunca voltarão a ser o mesmo. Mas aqui estamos, encontrámos uma forma de chegar a este torneio”, referiu o técnico do Montreal Impact, citado pela ESPN, num misto entre o desejo de voltar, mas também com uma boa dose de realidade que é do interesse de todos.

Ficar em casa, as críticas e as preocupações
Por outro lado, há quem pense que esta não foi a melhor decisão para o reatar do futebol nos Estados Unidos. Um dos maiores craques desta MLS, que dá pelo nome de Carlos Vela (MVP em título), não viajou até Orlando, pois decidiu ficar ao lado da família neste momento em que enfrentamos uma situação de pandemia. A mulher do avançado do Los Angeles FC atravessa uma “gravidez de risco”, fator que contribuiu para a escolha do mexicano, compreendida pelo clube. “Quero reforçar que estou cem por cento de acordo com o Carlos [Vela]. É uma altura importante para ele estar com a família agora. Falámos sobre isto dentro da equipa, o resto do staff técnico, todos os colegas dele sentem o mesmo”, disse Bob Bradley, treinador do LAFC, em conferência. Além de Vela, também Onuoha não foi para a “bolha”. “Não penso que deixar a minha mulher e três filhos no meio de uma pandemia fosse uma boa ideia, ainda mais durante um mês. Têm direito a não concordar, mas saibam que estou muito confortável com a minha decisão”, escreveu o defesa do Real Salt Lake nas redes sociais.
As críticas subiram de tom nas palavras de Bradley Wright-Phillips, que considera mesmo “estúpida” a decisão de fazer voltar o futebol em tempos como estes nos Estados Unidos (com quase 3,5 milhões de casos confirmados de Covid-19 no total). “Não estou preocupado pela forma como vou soar, porque não é segredo para mim. Acho que é um pouco estúpido, estou a ser honesto. Apenas penso que poderíamos ter esperado como o resto das ligas [de desporto norte-americano] e treinar até ser possível jogar. É isso”, atirou o avançado do Los Angeles FC em conversa no podcast The Sports Bubble. “Levaram-nos a todos para um sítio numa ‘bolha’ onde temos de ficar nos quartos, afastados das nossas famílias. Algumas pessoas têm problemas bem sérios na vida com os quais têm de lidar e tens de deixar a tua família por sei lá quanto tempo… mas o dinheiro fala mais alto”, considerou Wright-Phillips. “Quanto menos tempo lá, melhor. Honestamente, estás apenas fechado num quarto por muito tempo”, acrescentou o atacante que revelou ir passar esse período com vários videojogos.
Bob Bradley, treinador de Wright-Phillips, mostrou igualmente relativas preocupações, ainda antes da equipa viajar para a Disney. “Em termos de casos de Covid-19, claro que estamos preocupados. Estamos preocupados com o que vemos acontecer pelo país fora nos diferentes estados e todos estamos a prestar atenção redobrada às notícias. Os jogadores têm de se lembrar que isto é sobre se ajudarem uns aos outros, ficar unidos enquanto grupo, não é tempo de socializar com as outras equipas. São vários os desafios para este tipo de situação numa ‘bolha’ e penso que a melhor maneira de nos ajudarmos uns aos outros é sermos fortes enquanto grupo”, salientou o treinador, em declarações reproduzidas pela ESPN.
Numa operação com cerca de duas mil pessoas, entre jogadores, equipas técnicas e staff, três estádios, 51 partidas perspetivadas e final marcada para 11 de agosto, o torneio “MLS is Back” já corre a todo o gás com a fase de grupos. “Os jogos têm sido melhores do que seria de esperar. Era expectável que houvesse mais ‘ferrugem’ e que o calor/humidade de Orlando limitasse um pouco mais as coisas. O primeiro jogo para cada equipa foi com uma intensidade relativamente abaixo do normal, mas todos melhoraram a condição bastante rápido. É na mesma a MLS divertida e louca a que estamos habituados”, disse-nos Tom Bogert.
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