Pense rápido: é português e já treinou o Flamengo. Se respondeu Jorge Jesus… errou. O treinador em questão é Daniel Neri e o Flamengo em questão não é o do Rio de Janeiro, mas o de Arcoverde, no interior brasileiro. As coincidências param por aí. Se o compatriota famoso comanda o campeão do Brasil e das Américas, Daniel, hoje no Salgueiro AC, tem o modesto projeto de tirar a equipa da quarta divisão. À distância, acompanha o sucesso de Jesus, mas não acredita que a passagem vitoriosa dele seja garantia de portas abertas para os técnicos lusos. “Ele está a abrir um mercado, sim, mas o mercado dele”, afirma.
Assim como Jesus, Daniel suspendeu as atividades no Brasil e espera que a pandemia passe ao lado da família em Portugal. Quando deixou o país, o Salgueiro AC estava em segundo no Estadual de Pernambuco, à frente do Sport Recife e do Náutico, respetivamente nas séries A e B do Nacional, e já classificado para as meias-finais da competição. Aos 40 anos, o treinador considera o seu trabalho tão bom como o de Jesus. “Não é melhor, nem pior. O dele tem apenas maior dimensão, pois o Flamengo é mais conhecido do que o clube onde estou”, analisa.
Para ser justo, o certo seria dizer que Jesus seguiu o caminho de Daniel. O treinador chegou ao Brasil bem antes, em 2013, quando trocou o FC Porto por outro Porto, o de Caruaru, também em Pernambuco. “Encerrei o contrato aqui e, como tinha família no Recife, fui para lá. Sempre tive a vontade de trabalhar no futebol brasileiro e comecei a fazer o meu caminho”, diz Daniel. Além do Porto de Caruaru, do Flamengo de Arcoverde e do atual clube, o “caminho” do técnico registou ainda uma passagem de três anos pelas divisões inferiores do Sport Recife.
Daniel Neri com o elenco do Porto de Caruaru e no comando das divisões inferiores do Sport Recife
Daniel assumiu o Salgueiro AC em Novembro, na pré-temporada para o Pernambucano 2020, que começou em Janeiro. Sob o seu comando, a equipa jogou oito partidas, venceu cinco, empatou uma e sofreu duas derrotas. A uma jornada do fim da fase classificatória, sonha em ser mais um português a disputar um título estadual no Brasil. Isto com um orçamento para todo o departamento de futebol de 30 mil euros mensais, dez vezes menos do que apenas o salário de Jesus no Flamengo.
Confinado com a família em Amarante, onde nasceu, o técnico espera a chamada para retornar e cumprir o resto do contrato. Por enquanto, Daniel não tem planos para voltar a trabalhar em Portugal. Pelo menos, enquanto não conseguir a licença que lhe permita exercer a mesma função numa equipa da I Liga.
“Por incrível que pareça, a estrutura de trabalho na quarta divisão no Brasil é mais profissional do que a de uma II Liga aqui. No Salgueiro AC, a comissão técnica e jogadores vivem exclusivamente do futebol e não precisam de um outro vínculo para completar o rendimento”, explica Daniel, que tirou a licença B da UEFA e também da CBF, emitida pela Confederação Brasileira de Futebol, já que não há uma equivalência de autorização de trabalho entre as entidades europeia e brasileira.
Daniel diz-se adaptado às alterações do idioma e do clima – Salgueiro está a pouco mais de 500 quilômetros do Recife, no Sertão pernambucano, onde a temperatura em boa parte do ano é superior aos 30 graus. Apesar de se situar na região conhecida como “Polígono da Maconha”, devido às plantações clandestinas da erva espalhadas pela região, sente-se seguro a caminhar pelas ruas e elogia a hospitalidade dos locais. “Sinceramente, não tenho do que reclamar”, diz.
Atualmente na quarta divisão do Brasil, o Salgueiro AC já conheceu dias melhores, pois chegou a jogar a Série B do Brasileiro. O clube, que tem como mascote o Carcará, uma ave de rapina semelhante ao falcão, foi fundado pelo empresário Clebel Cordeiro, dono da banda de forró “Limão com Mel” – famosa na região e que já estampou a camisola da equipa como patrocinador master – e de uma rede de funerárias. Atual presidente da câmara, Clebel afastou-se da presidência, delegando-a num funcionário do clube.
A chegada de Jorge Jesus ao país rendeu alguns momentos pitorescos para o treinador, como ser chamado numa entrevista na televisão de “Jesus do Sertão”. Daniel leva as comparações na desportiva, mas sabe que o sucesso do compatriota não é garantia de vida fácil para ele. “Um técnico com dois metros não vai abrir mercado aos treinadores mais altos. Não é assim que funciona. Jesus é famoso não por ser português, mas por ser vencedor. Esta é a chave do sucesso e é nisto que devemos nos espelhar nele: quem vence, continua; quem perde, fica para trás”, finaliza.